Salvar o Fogo me encantou por contar mais da Bahia profunda

Cleidiana Ramos  

Minha relação com a literatura segue uns caminhos meio tortuosos, mas sempre baseados no princípio do que um livro é capaz de me causar. Com alguns deles tenho uma relação tão intensa que a revisita às suas páginas ocorrem por dezenas de vezes. Ainda assim construí relações de afetos com autores a ponto de consumir obras variadas. Dentre esses destaco, principalmente, Gabriel García Márquez e José Saramago.

O sintoma do quanto uma obra me apaixona vem principalmente de um sentimento de saudade que seus personagens e enredo causam sobre mim durante dias, às vezes semanas. E isso costuma ser libertador especialmente quando não se está na posição de fazer crítica técnica ou seguir os novos caminhos de gosto, em relação a produtos culturais, ditados por redes sociais especialmente o Twitter onde reputações se constroem ou são destruídas na velocidade e consistência dos bytes. Mas o que quero mesmo é falar de uma obra que recentemente me causou este efeito: Salvar o Fogo, de Itamar Vieira Júnior.

Comecei a leitura no mês passado depois de vários adiamentos devido ao meu caos pessoal, cada vez mais frequente, o que é também sintomático do poder que a literatura, especialmente a de ficção, possui para me acalmar. Deixei reservado o horário antes de ceder aos encantos do deus do sono, Morfeu, uma escolha complicada porque foram batalhas seguidas entre sucumbir à magia da divindade e a curiosidade de saber por quais caminhos seguiria a história banhada e atravessada por esse rio encantado que é o Paraguaçu.

Trecho do Paraguaçu em Iaçu.

E talvez, esteja aí, a razão da minha paixão por Salvar o Fogo superior a que tive por Torto Arado.  Este último, embora se passe na região da Chapada Diamantina, ou seja, outro universo completamente conectado à minha história de vida, quando o conheci ele já estava no patamar de absoluto sucesso. Embora o considere também um livro fantástico tem alguma coisa a mais em Salvar o Fogo, que me fisgou de uma forma como há muito não acontecia. Foi uma leitura de poucos dias e que só interrompi quando o sono, na vingança de Morfeu, vencia a batalha do limite.

Luzia, a protagonista, tem uma construção que fascina e nos faz ter uma empatia por ela mesmo nos momentos de comportamentos questionáveis. Mas é isso que a faz tão humana. Eu conheci e conheço muitas mulheres sertanejas com camadas semelhantes às de Luzia. Assim como os mistérios da deformidade que carrega no corpo é uma descoberta página a páginapenetrar na espécie de carapaça que ela criou para si mesma ao ter que enfrentar a hostilidade de um mundo que não sabe lidar com aquilo que lhe é misterioso ou diferente. Afinal, como dizia Jaime Sodré, uma das pessoas de que mais sinto falta nesse plano, o cartesianismo não afastou a magia do mundo. Nós é que perdemos a capacidade de percebê-la.

Entre magia e polêmicas

Gostei também da religiosidade mais sutil dessa nova obra de Itamar, embora o jarê de Torto Arado seja fascinante. Tem muito, mesmo sem a citação, do que é essa devoção cheia de nuances do povo sertanejo, categoria étnica que ainda necessita que cheguemos mais perto para analisar o quanto aproxima, por exemplo, Búzios e Canudos.

O menino Moisés, nascido em meio às águas, e o outro protagonista do livro, também é fascinante. Suas idas e vindas e o drama de ter que amadurecer em meio a tanto caos e aos entrelaçamentos com os dramas de Luzia é outro achado da obra. Interessante que só encontrei o autor pessoalmente uma vez em uma reunião com Rosângela Vieira Rocha, jornalista, escritora e uma das minhas mestras na formação acadêmica. Mas a sensação ao ler cada página é como se o estivesse ouvindo narrar a história.

Assim como aconteceu em relação a Torto Arado, Itamar tem se batido com críticas como a de “que não reage bem às análises de sua obra”. Mas há  outras nuances que para mim só emergem na direção de um escritor da era da Idade-Redes. Nesse universo tudo converge para produzir e alimentar as “tretas” de tal forma que chega um momento em que a gente já não sabe mais o que é convicção ou estratégias de engajamento, especialmente dos que aparecem na história como se tivessem chegado de paraquedas. É tudo muito ácido e barulhento, especialmente no Twitter que cultiva a linguagem da “guerra”: jantou, engoliu, quebrou e por aí vai.

Como tudo que cerca “debate” nas redes, o que menos ocorre é debate. Sobra o exercício da intriga, da fofoca, dos recados enviesados, das indiretas e da metida de colher de gente que não tem nada a ver com a história e só quer navegar na distribuição de ódio.  São os novos tempos e, talvez, Itamar Vieira Júnior seja o primeiro escritor brasileiro de sucesso em diversas camadas de público literário que necessita lidar com essas novas formas de relacionamento com mídia, crítica, leitores, não leitores e essas redes cada vez mais híbridas e dissonantes em vários aspectos . Que as boas energias cibernéticas o protejam porque não é fácil especialmente do ponto de vista emocional.

Tretas analógicas

Nas polêmicas recentes envolvendo o autor dessa beleza que é Salvar o Fogo, houve também muita referência ao que seria uma espécie de código de comportamento para escritores tomando   como padrão, por exemplo, Machado de Assis, que, segundo essas versões, reagiam com um tom lido como “elegância” às críticas. Certo para o senhor Machado, com aquele ar de humildade consciente de quem é genial que sempre me vêm na cabeça quando olho para suas imagens especialmente as “embranquecidas”.  Mas apenas assistindo de público a essas “pelejas” da era digital me peguei pensando em como seria um Lima Barreto, Luís Gama ou um João do Rio reagindo nessas redes a críticas sobre o que produziram.

Aos defensores de um certo distanciamento de escritores sobre reverberar o que os incomoda ou sair do lugar de “humildade” porque a voz soberana da “crítica” não pode ser calada, como se ela tivesse salvo conduto para dizer o que se quer; quem escreve o que quer- e vale para os todos os lados, não?- tem que aceitar o que vier. Jornalistas, por exemplo, sabem disso desse sempre e, se não, eita como vão sofrer na primeira peça de desagrado porque o que mais vale sobre essas redes é o ditado de que bolir com muitas pedras é vê-las retornar em estilo bumerangue.

Mas voltando aos escritores e seus críticos no passado. Nem todos ficaram na elegância de Machado de Assis. Uma das histórias mais  divertidas que já li sobre as famosas pelejas que volta e meia eram travadas entre escritores e críticos, via os jornais, foi a que envolveu Júlio Ribeiro e o  padre Sena Freitas, um gramático que resolveu criticar “A Carne”. A escolha de Sena Freitas, óbvio, foi fustigar Júlio Ribeiro com possíveis erros no manejo da língua culta.

Eis um trecho de um texto em que Júlio Ribeiro anunciou sua decisão de responder Sena Freitas e  as razões para isso:

“Vou cumprir uma promessa, vou escrever sobre o padre Sena Freitas: nesta primeira quinzena de Dezembro começará a aparecer a minha série de artigos.

Para que o público possa achar a razão da severidade, da amargura, da virulência mesmo insólita desses artigos faz-se mister que releia o que com o título – A Carniça – publicou o reverendo no Diário Mercantil.

Nessas furibundas verrinas do padre sou eu apresentado como vendilhão de carne de bordel, como um homem que geme sob a imputação de imoralidade pública, como um doente de satirídeo a debelar com desfaçatez perante Deus e o mundo o seu orgasmo indomável.

E passa ainda além o padre: não me respeita no que há de mais sagrado, naquilo em que ninguém me pode negar direito a ser respeitado, sejam quais forem as minhas convicções filosóficas, seja qual for a escolha literária a que ou me tenha filiado.

Podia criticar o meu livro o Sr. Padre Sena Freitas, podia; mas devia tê-lo feito “em linguagem polida, própria do ministro de uma “religião de caridade, própria de um homem mediocremente bem educado, que criticava a outro a quem ele não tinha motivo nenhum para desestimar, e talvez algum para respeitar.

O Sr. Padre Sena Freitas não teve a mínima razão para agredir-me, para ofender-me do modo cruel por que o fez: ele próprio confessa que eu sempre o tratei com demasias de respeito, com excessos de consideração.

Por minha honra! É contra a minha vontade, é forçado que eu entro nesta polêmica.

Para evitá-la, a nada ter-me-ia eu poupado. Se eu tivesse sabido dos artigos – A Carniça – antes que eles tivessem aparecido, eu teria feito tudo para que não aparecessem: eu que sou orgulhoso, eu ter-me-ia humilhado, eu teria ido pedir ao Padre Sena Freitas que os não publicasse!!!

Apareceram… Agora não há o que me detenha: eu hei de vingar-me”.

Júlio Ribeiro participou do que seria chamada hoje de “treta” com um crítico de seu romance A Carne.

 

E como se vingou. O que nunca esqueci é um dos auges da resposta de Júlio Ribeiro quando ele chama Sena Freitas de “cavalgudura”. Para mim é um exemplo da síntese quando alguém que chamar a atenção sobre a estupidez do outro, afinal resume todos os tipos de montaria. Sena Freitas tinha feito jogos de palavras com a obra de Júlio Ribeiro por conta especialmente da alta sexualidade dos trechos da obra a ponto de chamá-la, como afirma Júlio Ribeiro, de  “A Carniça”.

Um exemplo “analógico” de quem nem sempre escritores se calam quando sentem que a crítica foi mais além do que a forma. Mas esse é um assunto para especialistas, o que não sou, e que todas as deusas e deuses me protejam de mim e das redes. Além disso, bem-aventuradas e bem aventurados serão os que puderem, assim como eu, ler Salvar o Fogo apenas pelo prazer de uma boa leitura que ensina um pouco mais sobre uma Bahia e um Brasil que pouco conhece a si mesmo. Para quem se propõe a fazer isto sem armas e armaduras é um presente. Obrigada, Itamar.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia.