Cleidiana Ramos
Hoje, 15 de outubro, a Estação Ferroviária de João Amaro completa 140 anos. Inaugurado em 1883, o prédio é uma testemunha da importância que João Amaro, distrito do município de Iaçu, possuía para a região. Um dos palcos dos conflitos das chamadas guerras de conquista dos Sertões da Bahia, a localidade tem a denominação do proprietário da sesmaria doada por decisão do Rei de Portugal, Dom João IV. A doação foi por serviços prestados à coroa portuguesa no processo de disputa do território com populações indígenas com um rastro de etnocídio. Segundo um dos documentos, cujo conhecimento devemos à persistência e paixão pela história local de Valdemar Ferraro (1920-2015), antes de João Amaro, o pai dele, Estevão Ribeiro Baião Parente já havia feito uma expedição e uma portaria de posse lhe foi dada da povoação que ergueu como vila com algumas casas, curral e uma igreja em 19 de março de 1764, o que coloca João Amaro não apenas como um das localidades mais antigas da região do Piemonte do Paraguaçu e Chapada Diamantina mas abre a possibilidade de festejar seus 350 anos de fundação no ano que vem.
No Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia, publicado em 2002, a importância que João Amaro possuía no século XIX para receber o primeiro ramal da ligação ferroviária denominada Cachoeira- Chapada Diamantina, com passagem para Feira de Santana, por meio da Lei Geral nº 1242, de 16 de junho de 1865, foi destacada:
“Estação Ferroviária do tipo passagem, construída no final do século XIX, à margem da Estrada Central da Bahia. Apresenta planta em “T”, único exemplar encontrado na região em estudo. Sua volumetria indica a importância que a localidade de João Amaro representava para a região, onde a grande maioria das estações é de pequeno porte. Estilisticamente existe uma predominância e elementos neo clássicos, platibanda com frontão, arcos plenos, etc, não desprezando, porém um elemento comum nas estações da área, que é o telhado em duas águas e seus beirais sustentados por mão francesa”.
(Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia- Vol. VII – Monumentos da Região Pastsorial do Estado da Bahia, 2002, p.116).
A chegada desse ramal que resultou na construção do belíssimo prédio teve outros desdobramentos fundamentais para o território elevado à condição de município. Foi por conta da expansão do ramal que um trecho da Fazenda Sítio Novo, propriedade da família Medrado, acabou ganhando relevância por estar mais bem localizado no trecho do Paraguaçu com ligações mais próximas a Itaberaba, Ipirá e Rui Barbosa facilitando um dos principais negócios da região: o transporte de alimentos e mercadorias por meio das tropas de mulas que já acontecia seguindo o curso do rio.
Logo um povoado se formou e, em 1904, Sítio Novo ganhou uma ponte rodoviária, a Severino Vieira, que vai completar 120 anos ano que vem; e, em 1924, a ponte ferroviária para ligação com o ramal que ia até Itaberaba. Isso reforça a importância que a cidade-sede do município ia conquistando em relação a João Amaro. O desfecho para a escolha definitiva de Iaçu como a sede municipal ocorreu em 1958 quando por conta de uma briga política em Santa Terezinha, a família Medrado encampou o projeto de criação do município. Com adversários em João Amaro e Lajedo Alto que vinham ocupando os postos de veradores na Câmara de Santa Terezinha- José Carlos Vaz Sampaio e Vivaldo Andrade, respectivamente- os Medrado definiram Iaçu como sede.
Celebrações
Mas antes dessa elevação da hoje Iaçu, que teve um início em torno da estação que abriga uma estrutura fortemente operacional mesmo com a gestão da ferrovia por empresa privada, a localizada em João Amaro teve os seus dias de glória. Era, por exemplo, o local em que começava uma das grandes festas de João Amaro: a celebração para Santo Antônio, seu padroeiro, mas com homenagens também a São Benedito.
Segundo relatos de filhas de João Amaro, como Celestina Almeida Rebouças, minha Tia Cecé, era comum a recepção ao padre e à filarmônica em seu desembarque do trem de passageiros. E assim começava um dos muitos desfiles comemorativos.
Ainda criança acompanhei as festas de Santo Antônio em João Amaro. A estação já estava desativada e no processo que culminou no arruinamento de parte da sua estrutura. Mas a festa ainda era belíssima, com muitos elementos como a procissão e a Missa dos Vaqueiros seguida de disputa de argolinha um esporte por excelência dessa categoria. Tudo isso era mantido com a colaboração e esforço de João Folia, como era conhecido o animador das festas. João Amaro fervilhava nas trezenas e no dia da celebração do seu padroeiro.
O distrito tem também memória de carurus memoráveis para São Cosme e São Damião no casarão da localidade conhecida como Coqueiros, embalados pelo samba de viola. Era uma construção belíssima de sobrado toda em madeira com escadas internas em caracol, poço externo e pilão para fazer farinha. Em 1997 quando fiz a pesquisa que resultou no livro-reportagem Os Caminhos da Água Grande, o casarão estava de pé e era possível ainda admirar de fora- por questões de segurança- sua estrutura construída em cima de uma formação rochosa que a gente chama de lajedo. Infelizmente retiraram a madeira de forma completa e a construção desapareceu.
Já a igreja dedicada a Santo Antônio ainda bem teve alguns lances de sorte. Ela mantém de forma “milagrosa” sua estrutura praticamente original com torre única, varanda, coro e altar em madeira. Pelo menos até agora não foi identificada uma grande reforma no século XX e nessas primeiras décadas do século XXI.
Em 2001, como repórter do jornal A TARDE, fiz uma entrevista com o grande historiador Luís Henrique Dias Tavares, autor do clássico História da Bahia, e ele ficou tão encantando com a igreja que pediu ao Conselho de Cultura da Bahia que considerasse seu tombamento, o que foi efetivado no ano seguinte. O laudo foi feito pela arquiteta Milena Tavares, que na época estava no Ipac e durante a viagem para produção da sua análise técnica ela me ligou e falou da estação, pois estava preocupada com a sua condição física.
A estação não tem nenhum tipo de salvaguarda ainda hoje. Segundo a publicação do Ipac, que já citei aqui, em 1940 ela passou por reformas- reconstrução das plataformas, restauração da cobertura, reparos gerais e pinturas- pois já se encontrava em péssimas condições estruturais. Depois desse período e com o abandono do sistema de trens de passageiros, a Estação de João Amaro passou a decair rapidamente.
Em 2012 com a eleição de Nixon Duarte para prefeito, eu fui uma das pessoas que o incentivaram a encampar um projeto de restauração de tão importante equipamento. Não é fácil conseguir recursos para a gestão de patrimônio, especialmente em municípios de pequeno porte como Iaçu. Mas o então prefeito mostrou uma sensibilidade única e conseguiu recursos federais para a obra.
Existia um projeto desenvolvido por profissionais da União dos Prefeitos da Bahia (UPB) que havia sido apresentado a um gestor de 2004, mas que disse não ter interesse em encampar o projeto. Na gestão de Nixon Duarte a obra foi realizada e ficou a um passo de ser inaugurada, mas ele não foi reeleito na ocasião. Seu sucessor finalizou o projeto, mas não tenho informações se houve inauguração ou outra celebração do tipo. O imóvel foi transformado em subprefeitura de João Amaro.
Recomeço
Na eleição de 2020, Nixon Duarte retornou e com essa gestão renasceu a esperança de transformar esse equipamento reformado, de forma única até agora na região, em local para ações educacionais e culturais. Algumas atividades neste sentido estão acontecendo com o suporte das secretarias de Educação, sob a gestão de Zene Sodré, e Cultura, Comércio e Turismo, liderada por Eziquiel Santos.
No último dia 29 de setembro tive a felicidade de poder comemorar os meus 25 anos de jornalismo e fazer o lançamento de dois livros Os Caminhos da Água Grande (segunda edição) e Cibervida, Cibermorte, Cibersorte em ebook na Estação de João Amaro. A minha alegria foi tripla, pois meus pais Pacífico Teixeira Ramos (1933-2004), Chico Preto, e Ana Costa Ramos, Dona Nazinha, são filhos de João Amaro. Meu pai foi prefeito de Iaçu por duas vezes e meu tio paterno José Teixeira foi vereador, em um movimento contínuo de moradores e filhos de João Amaro assumindo posições de relevância na política e gestão local. Zene Sodré, a atual secretária de Educação, é de João Amaro, vale ressaltar.
O novo desafio que considero para o município, com destaque também para o legislativo, é aproveitar tantas datas históricas, especialmente os 350 anos de João Amaro no ano que vem, para fortalecer a rede de gestão do patrimônio material e imaterial que é riquíssimo. O Executivo, sob a liderança de Nixon Duarte, já tem demonstrado sensibilidade, assim como alguns setores da sociedade civil local. É hora de fazermos essa articulação coletiva para celebrar as nossas histórias e memórias como povo.
Livros
Aproveito para destacar que algumas das informações citadas neste artigo estão no livro-reportagem Os Caminhos da Água Grande. Resultado do meu trabalho para graduação em jornalismo em 1998 pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-Ufba) ele também está completando 25 anos e por isso ganhou uma segunda edição reforçada com notas técnicas especialmente sobre a história da formação do território do município.
Veja vídeo com apresentação sobre Os Caminhos da Água Grande.
Para adquirir Os Caminhos da Água Grande você pode enviar um email para projetoiomi25@gmail e combinar a forma de entrega. O custo do livro é R$ 70 (Setenta Reais). O pagamento pode ser feito por chave Pix (projetoiomi25@gmail.com).
Já Cibervida, Cibermorte, Cibersorte, um conjunto de histórias sobre os impactos das tecnologias da informação e comunicação na rotina e outros segmentos da vida cotidiana, está disponível no site da Amazon e logo terá também uma versão física. Para acessar a página do Ebook é só clicar aqui.
Cleidiana Ramos é jornalista, doutora em antropologia e professora visitante na Uneb- Campus XIV- Conceição do Coité. Coordena os projetos em memória social do Grupo A TARDE- REC e A TARDE Memória, além de realizar a curadoria do acervo do Cedoc A TARDE.
