Moisés Viana
Quando o telefone tocou, era Cleidiana Ramos. Conversamos por mais ou menos uma hora. Foi maravilhoso; uma prosa sobre tantas coisas; assim são nossas trocas de ideias. Hoje em dia as pessoas ficam ansiosas e irritadas com ligações, muito mais com conversas que ultrapassam cinco minutos; não suportam mensagens longas, textos compridos, livros completos e coisas profundas. Mas eu sou analógico e convivo com analógicos em um mundo em mudanças para o digital. Somos de um tempo em que as anotações faziam parte da formação jornalística, hoje estamos em um mundo de frames, cada vez mais frenéticos que se esquecem minutos depois. E gradativamente a superfície plana da escrita à mão, que nos leva a refletir, vai sendo deixada de lado nestas interfaces da sociedade incivilizada lembrando das reflexões de Muniz Sodré sobre o contemporâneo.
Depois que conversamos Cleidiana e eu sobre as histórias e trivialidades, a escritora, ela, me fez o convite para ler seu copião Cibervida Cibermorte Cibersorte Crônicas de erros, acertos e disparates humanos no tempo sem fim das redes, fruto de suas vivências, impressões, reflexões que tanto nos desafiou durante e após o apocalíptico pandêmico. O tema e o estilo da escrita são bem atuais e nos conduz para um mundo real-ficcional.
Penso comigo, hoje, como é difícil escrever sobre uma obra, ainda mais a escrita de Cleidiana Ramos, jornalista de mão cheia, pesquisadora da comunicação, professora, mulher de raízes ancestrais. Esse desafio é dado como uma espécie de ação hercúlea, pois sou pouco dado às ficções. Porém esses desafios nos tiram do lugar do conforto para o lugar do aprendizado.
O espírito dessa época não é tempo de Ktembo (memória, ancestralidade, magia e virtude) legado para nós pelos bantus ou Kairós (oportunidade, revelação, consagração) dos hebreus, mas de Kronos (destruição, passagem, fim). Esta última versão do tempo é devoradora de tudo, destruidora como a ferrugem da oxidação natural das coisas.
Nosso medo de morrer, os surtos imaginativos foram minimizados e agravados pelas comunicações disruptivas que nos desorganizaram de forma incisiva. Era uma conversa continuada com a autora, lembrando dos momentos do abandono do governo do inominável, os agenciamentos dos aparelhos cibernéticos, os algoritmos, os big techs, só temas que trouxeram medo e consolo durante a peste. Cronos reinava como uma deidade cruel e perversa, essa era uma impressão minha sobre aqueles momentos.
Cleidiana Ramos reflete essas interfaces dos tempos que nossa cultura brasileira nos remete em metáfora, em crônicas ricas, disruptivas como deve ser, uma escrita fértil, comunicativa de um jornalismo vivido em uma prática-reflexiva. Um saber-fazer bem interessante. A crônica como estilo se aproxima do ensaio e exige uma destreza das palavras, o que Cleidiana faz com maestria em seus contos em um realismo fantástico, crítico, às vezes ácido e bem humorado.
O conto que mais me deixou impactado é “A captura do prazer de comer pela faminta boca virtual”: Sobre uma história de desvirtuamento da prática do “de comer” que precisa só de equilíbrio. Essa crítica à positividade tóxica, às novidades e aos interesses dos conglomerados da indústria dos produtos processados e vendidos como alimentos, crítica a reformulação dos corpos e agenciamentos do capital sobre nosso tempo e devoramento cromático que tenta apagar os rastros das memórias. Mas lembramos que o comer bem não é quantitativo ou estruturado em modelos da colônia e corpos brancos, porém padronizados na crueldade, no racismo e nos pagamentos. No entanto, é a forma do uso e das relações que interessa aqui.
A tecnologia não é má em si, as relações que a torna uma verdadeira patifaria sob a lógica de sua concepção e uso perverso. Lembremos da face ancestral do tempo, aliado de Ogum, senhor das tecnologias que conhece os caminhos da virtude e da danação, e que nos faz sentir. Cleidiana nos faz pensar sobre essas interfaces dos mundos. Os ancestrais não nos abandonam. As entidades que nos acompanham não nos deletam de suas vidas à medida em que não perdemos nossas raízes. Aqui é um salto maravilhoso da escrita do livro, pois o ciber não tem poder de agenciar um esquecimento sobre os mundos que nos compõem, pois os multiversos interpostos convivem, se chocam, se completam e se organizam sempre.
“Quem pensa que viu tudo, corre o mundo que vê mais” é um dito nagô que circula no meu terreiro, Ilê Axé Ijexá, e acredito que deve circular nos demais terreiros nagôs na Bahia. Assim o livro nos faz correr o mundo de uma forma bem eloquente como se pudéssemos ter uma composição de nossa época. E essas redes da cibernética em nossas vidas perpassam e passam. Antes delas vivemos outras redes, de outras dimensões, conectadas em miríades de relações e malhas biocognitivas, em corpos sutis, em formas de vidas imperceptíveis, às vezes descritas-escritas ficcionalmente, mas que retratam tempos imemoriais presentes em nossas vidas.
Nosso tempo é agora!
Moisés dos Santos Viana é jornalista, doutor em Difusão do Conhecimento (Ufba) e professor da Uneb no Campus XIV- Conceição do Coité.